abril 04, 2012

era uma vez _ por maíra das neves


Quando cansou de rodar, depois de ter se estabacado num desses vai-e-vens, de ter sobrevivido a um terremoto e a muitos pequis, um capacete lhe acenou.

Se vermelho ou amarelo não se sabe ao certo, mas ele estava ali, do lado e no meio de uma rede à beira-mar.

Lá se empoleirou, e foi ficando. Nesse tempo encontrou um velho lutador que consertou sua asa, um filhote de tubarão lhe atacou e logo descobriu que tinha amigos. Conheceu o carnaval e a tristeza da quinta. Sua pele passou do gelo pro marfim e seu corpo mudou de tanto subir e descer curvas de pedra em zigue-zague.

Sentiu que ficaria por ali, mas ainda faltava um canto pra chamar de seu.

Foi quando outra filhinha da mandioca, uma que faz trovões na pororoca digital, se transformou em fada-madrinha e levou-lhe até o porto pra conhecer seu ateliê na fábrica de chocolates desativada.

Muitos eram os metros quadrados na espera de quem cuidasse deles. Estavam todos imundos, quebrados, sem piso, sem forro, sem luz ou água. Gostou de um, atrás do elevador e no meio da passagem, e decidiu que seria ali.

Colocou sua roupa de negócios, preparou documentos, recortes, cabelo e resumê, todas essa coisas de convencimento e foi insistir. Enquanto insistia, desenhou com silver tape um quadrilátero regular no piso irregular do quinto andar e colocou um ovo gigante nele. E insistiu por vários meses. O ovo nem branco mais era de tão empoeirado. Já estava pra desistir quando assinaram o contrato de aluguel. Com 14 reais ao mês, se tornou responsável por aquele quadrado de chão e o espaço acima dele, até o teto. É seu primeiro ateliê: 1m2. No mesmo dia, o ovo desapareceu.

Maíra das Neves começou então a arrumar o 1m2. Tirou a fita do contorno e trouxe um piso novo. Preparou e encerou cada pedaço e, na hora de colocar, descobriu a fonte de azul que brotava do chão.

Com pano e água foi tirando o pó, mas foi só encostar numa parte lá e o azul escorreu mansinho. Esfregou, esfregou, jogou balde, quanto mais tentava limpar mais brotava. Maíra ficou inteirinha azul. Até que desistiu de lutar com a cor, secou tudo, trocou o piso do quadrado e decidiu voltar depois, com equipamentos exploratórios.

Assuntou com vizinhos e assim soube da pilha de caixas com pigmentos que ficava ali, na época em que se enchiam pacotes de café, chocolate e canela naquele prédio. O amarelo já tinha ido, e o azul, vazado, se impregnou nos rejuntes e cristalizou tão duramente que não saía nem com ponta de faca. Mas era só babar um cuspezinho e ele já saía do concentrado carmim, todo eloquente.

Foi nessa fase exploratória que se cansou de sentar na poeira do chão. Mas não sabia como guardar banco ali. O 1m2 é assim, sem porta, sem janela, sem parede. Tem só chão e uma lâmpada. Olhou pra cima e viu as vigas de ferro correndo no teto. E imaginou roldanas e cordas pra guardar pendurando. Imaginou até um balanço, mas esse ainda não conseguiu colocar.

Maíra queria também receber pessoas, e receber bem, o mínimo conforto.

Mesmo com o 1m2 pelado vieram muitas visitas, trouxeram surpresas, instrumentos musicais e até uma árvore-bebê pra chamar felicidade.

Comentando, descobriu quem poderia fazer e instalar a tal estrutura de ferro e roldanas: o homem colorido com nome de santo que faz corações de porcas e parafusos. Ele é encontrado aos sábados em uma garagem-oficina depois do túnel, lá onde uns motoqueiros roqueiros se juntam para consertar e beber.

Para fazer a estrutura e ainda comprar os móveis, precisava de altos números azuis na sua conta. E havia anos que só conhecia vermelhos. Apelou pra multidão, contou sua imaginação em vídeo e conseguiu mais de oitenta apoiadores pra mobiliar o ateliê. E como recompensa, cada um recebeu, através da máquina-correio, um envelope-bolha com um pedaço de papel de bambu ou de algodão com um bocado de azul recolhido molhado apertado do chão. Chamam-se aquarelas. E todos ficaram satisfeitos. Hoje, a fonte de azul não existe mais, ela foi tampada por uma parede de tijolos da vizinha.

Mês passado o contrato venceu, mas um novo já está escrito. Mais um ano de 1m2 virá. Sempre aberto a visitas e experimentos. O mais recente foi quando um amigo-ilha trouxe água, fogo, copos e pratos e operou a penumbra-mãe na sexta-feira 13. Ainda falta um radinho de pilha e uma planta pra ornar, mas aos poucos tudo cabe. Apesar do furacão Remoção que tem assolado a região, a fábrica continua em pé. Grandes transformações, imensas, pra toda gente. Maíra aprende: cada um no seu quadrado.



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